Meu pai voltava a noitinha enquanto minha mãe dormia. Abria a porta do
quarto devagar para ela não ouvir os passos que de mansinho deslizavam
sobre o chão azulejado da casa. Desviava do berço que os dois haviam
comprado para mim quando viesse ao mundo. Chegado à cama, sem acordar a
minha mãe, a beijava o lábio inferior da boca junto da bochecha
e depois apalpava a sua barriga e eu dava uns giros nesse momento.
Depois dos chutes, ela acordava e com a certeza de que era o meu pai que
havia chegado ela respondia aos beijos loucos de papá. Quando ela
sorria, eu conseguia ver o seu coração a brilhar de luz. Uma substância
estranha criava-se dentro da bolsa onde eu estava envolvido. Era um
líquido esbranquiçado, viscoso e bastante fino. Entrava pelo tecido
umbilical e eu sentia uma energia extasiada no meu corpo que fazia com
que desse mais giros. Ai, mamã chamava papá para sentir o meu chute. Ele
encostava a cabeça com cuidado para não me sufocar de tanta felicidade
que nutria. Nesse momento, um sorriso esplêndido vestia o rosto da minha
mãe que se encontrava desajeitada com tanto carrinho.
Lembro que
outro dia, num final de semana meus pais decidiram fazer um jantar a luz
de velas no quarto. Parece que o destino jogava ao seu favor, naquele
final de semana. A energia da zona havia sido apagada. Magaiver que meu
pai era, fez as suas engenharias de velas, pondo-as ao alto do candeeiro
pendurado no centro do quarto. Ai os dois dançaram ao som de fado e de
outras músicas estranhas como japonesas e chinesas. Não entendia nada do
que se cantava. Contudo dava para perceber que eram cantigas que
entoavam os sentimentos mais nobres que vivem no coração das pessoas.
Horas e horas passavam, agarrados em torno de um e de outro papai e
mamãe dançavam. Por conta dos efeitos da barriga da minha mãe, os seus
pés trémulos começavam a doer. Era o peso da minha cabeça que tornava um
encargo ao corpo da mãezinha. Aí ela pedia uma pausa. Meu pai
compreensível aceitava logo de primeira e a carregava para a cama onde
faziam amor até o sol florescer.
O tempo passou, a barriga cresceu
mais e eu nasci. Nunca vi o rosto do meu pai. Desde pequeno me contavam
que papai viajou para a terra do nunca. Na verdade jamais percebi
patavina porque ele não retornava.
Chegou o tempo da escola. Aprendi
a ler as letras e o ambiente. A curiosidade que em mim vivia fez com
que um dia me interessasse pela agenda grande e cromada da minha mãe.
Comecei a ver fotos de papá e mamã. Logo, lembrei daquele rosto que me
tocava quando estava dentro do ventre da mamã. Uma confusão em mim se
cria. Não sei se aquilo foi um sonho ou foi real. Mas senti como se
tivesse acontecido ontem. Até hoje as pessoas discutem comigo. Dizem que
um rebento não é capaz de conservar tamanhas memórias. Mas eu as tenho
gravado em mim.
A curiosidade me avassalou. Mergulhei fundo nas
entrelinhas. Foi ai que li que meu pai morreu exactamente no dia em que
nasci. Ele era guarda nocturno, havia abandonado o seu posto só para me
sentir no seu caloroso colo. Mas não conseguiu chegar a tempo. Os donos
da noite, os abutres da podridão o abordaram. Queriam dinheiro. Como ele
não tinha, o tiraram a própria vida. Separando-nos antes de nos
conhecermos fisicamente.
Quando durmo a noite, as vezes um homem vem
visitar- me vestido de branco. Não consigo ver o seu rosto. Quero
acreditar que seja meu pai que vem do céu me visitar.
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