segunda-feira, 5 de maio de 2014

O DILEMA DO ATENDIMENTO EM HOSPITAIS PÚBLICOS NA PELE DA PESSOA AMADA


Pessoas aguardando na fila do hospital

Acordei no alvorecer do dia para poder passar do hospital ver a minha amada e ajuda-la a aguardar o atendimento no hospital. Nisto, já a dois dias, acordava as quatro da manhã para filar naqueles bancos insólitos esperando que lhe extraíssem o dente. Nos últimos dois dias foi mandada voltar para casa, pois, havia excedido o número de senhas para consultas e extração de dentes. Depois destes dois dias de agonia, ela fez o TPC de casa. Acordou as duas da madrugada, o que acabou conferindo-lhe o sexto lugar no atendimento. Entretanto, não a pude acompanhar, pois, estava moribundo de sono e ela havia falado que estaria na companhia da mãe e dos irmãos, o que de certa forma me inibia de participar no acompanhamento.
Passando do hospital antes de ir ao serviço tive que fazer uma ginástica tremenda para poder localiza-la, porque aquele cenário amargurado e deplorável parecia uma daquelas cenas que a gente sô vê nas novelas e nas telas de cinema retratando o surto de uma epidemia ou de um campo de concentração.
O dilema do hospital público, o preço de ser pobre, a consequência de não ter um plano de saúde. Pessoas estateladas no chão como formigas, outras deslizando nas paredes como se fossem galagalas. Contemplei rostos tristes e amargurados lamentando o mau atendimento e a demora. Senti um peso na alma como se fosse o causador daquela situação. Parecia que podia tornar-me um médico e atender aquela chuva de gente. Enfim, encontrei a minha parceira, depois de um pouco de conversa e umas pequenas piadinhas para dissipar o semblante triste no seu rosto, despedi-a no momento em que começaram a chamar as pessoas para o atendimento. Espantou-me quando no último momento o bilheteiro saiu e disse: “só vou distribuir senhas para quinze pessoas apenas. O resto vem amanhã. Não quero ninguém a perseguir-me, acho que fui claro”. Aquelas quinze pessoas não chegavam a contagem do número total dos dedos de um ser humano, se comparado com a massa total de gente que estava ali a espera do bilhete. Parecia que estava a anunciar a mágoa que estava por vir.
Passado o dia, a minha parceira mandou-me um bip, o que retornei no momento. Falou-me de ter conseguido extrair o dente, mas, o restante não consegue ouvir por causa do telefone que usava. Isso fez com que passasse da sua casa para ouvir em viva voz o que entrava no meu ouvido com perturbações tecnológicas. Logo ao chegar me abraçou, olhou no meu olho de forma fixa e começou a contemplar-me. Não falou durante um bom instante, até que de repente quebrou o silêncio “te amo mor”. Apertei-a profundamente como se já tivesse ouvido a tristeza que me queria contar através do silêncio que reinava em nós.
Finalmente abriu a boca mais uma vez, bebeu o ar e deixou sair um monte de palavras compostas de mágoas e tristezas. “ Sabe, ela me apertou, pôs-me anestesia do outro lado da boca e nem era o lado onde estava a doer. Eu avisei-a que não era ali. Nem por isso parou, tirou-me o dente a sangue frio, girou a cadeira comigo. Sabe, gritei até todo mundo que estava no hospital ouvir. Enquanto eu dizia não é ai onde estas a anestesiar, ela dizia que sempre trabalhava da mesma forma. As pessoas que estavam comigo na bicha diziam que ela era muito chata, mas eu ganhei coragem e pensei que elas queriam assustar-me apenas” enquanto ela falava, apertava-a cada vez mais como se pudesse tirar aquela dor de si para dentro de mim.
Depois de um tempo voltamos no silêncio das palavras. Comecei a sentir algo estranho dentro de mim, os pés a desfalecer, os braços a minguar, senti o ar a escassear-se, o que fez com que suspendesse a respiração de modo a fazer um equilíbrio para não desmaiar. Tentava acima de tudo mostrar-me confiante e forte para não parecer que eu fosse o doente. De novo começou a falar “Para mim ela devia trabalhar no matadouro.” Olhando-me fixamente fez uma declaração que me deixava cada vez mais chocado “Deviam dar-lhe cabeças de gado para treinar com elas e não humanos. Para mim, aquilo foi como se tivesse para morrer, não gostaria de lembrar daquele episodio na minha vida. Mas fazer mais como? Fará parte das minhas lembranças. No vazio do dente extraído irei sentir o vazio da alma que ela tinha. Não sei como aceitam com que pessoas assim trabalhem nos hospitais com seres humanos. Aquela senhora é uma assassina, ela devia sentir uma vez na vida aquilo que eu senti. Era como se tivesse a puxar a minha alma através do dente. É isso ai você Filipe.”
Essa foi uma das poucas vezes que eu me encontrei demasiado. Depois de tudo, vim-me embora para casa conversando comigo mesmo. Não conseguia ouvir-me. Era como se a dor tivesse a bloquear a minha voz, como se o meu corpo não quisesse sentir o que a alma experimentava.
Portanto, não esperem nenhuma conclusão nesta história pois ela nunca teve fim, continuo a sentir a mesma dor até hoje. Não há como separar isso de mim, parece a cicatriz do umbigo que só desaparece quando o corpo da gente se decompõe.


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