terça-feira, 24 de junho de 2014

Não quero odiar essa farda

Na mais inocente caminhada da adolescência comia a estrada aos bocados regressando à casa depois de ter aprendido uma lição. Naquele tempo, estudava na escola Secundaria da Polana. Por mania, se não for por gostar da solidão da companhia da minha mente voltava muitas vezes sozinho. Era o único momento em que falava comigo mesmo já que a vida me esquecia e eu gostava de a esquecer também. Entre árvores e asfalto, voava na minha mente inocente e rebelde. Conversava com vários autores lidos na pequena biblioteca improvisada da escola. Passavam na minha mente enciclopédias e muitos quadrinhos como “Conan e os bárbaros” ou “Conan na selva”.
As pessoas passavam de mim, como árvores na janela de um carro em andamento. Passavam como sombras que só serviam de espantalho no meu mundo imaginário e de contos. Os passos descomandados me levaram até ali. Passei.
-Psiu, psiu- uma voz grave num tom bastante grosso se dirigiu a mim- você mesmo ande aqui.
Foi como se tivesse despertado de um sono milenar ao qual adormecera, daqueles sonos abundantes de sonho. Já que em casa não podia dormir bem por causa dos problemas familiares. Preferia por isso dormir na rua a andar. Era o único momento que me era permitido sonhar nas entranhas da adolescência que aspirava pela liberdade. Sentia-me como uma borboleta presa no seu casulo a espera das asas coloridas para voar e conhecer o mundo fora. Depois daquele chamado parei. Olhei para trás como se tratasse de um sonâmbulo em pleno dia. Coisa de louco. Sem abrir os olhos da alma, por instinto sonoro segui aquela voz. Parecia que a escutava a quilómetros dali. Vi um vulto na minha frente. De novo a voz se dirigiu a mim:
-Não estas a ver por onde por está a andar?- apontou-me dois cones que sinalizavam um perímetro ao qual não devia atravessar-se. -o senhor está a fazer-se de ignorante- repetiu?
Que tolo, chamava de senhor a um adolescente e quando chegar a juventude irá chamar-me de velho? Eram as perguntas reflexivas que haviam invadido a minha mente. Uma coisa chamou-me atenção: aquele uniforme que vestia parecia de soldados. Nesse momento, os meus dedos trémulos começaram a se descomandar. Não sentia mais os pés. Um ar gelado abateu-se sobre a minha testa grande e brilhante por causa do óleo de cozinha que aplicava por falta de vaselina. Era um soldado, conclui. Forte, alto, escuro e armado até aos dentes. Tinha um AKM apontado para o chão. O braço direito segurava a arma enquanto o do lado esquerdo ajudava a boca a disparar as balas armadas em palavras.
-Você se faz de cego, faz de nos ignorar aqui.- Falou mais uma vez. Estava bravo como se fosse um animal que só queria preservar o seu território, continuou- Anda para eu te dar um carrolho para nunca mais passar daqui.
Durante aquele palavreado mantive-me calado. Quando ouvi carrolho, não aguentei. Deixei a língua beber o ar. Desvirginei o silêncio com um protesto sereno, breve, mas com bastante ensino para o soldado.
-Por mais que o senhor me bata ou que mi dê um carrolho, o que vai fazer com que eu deixe de passar daqui não será a bofetada qua me vai dar. O aviso que o senhor fez penso que basta. O que muda as pessoas não é a violência exercida sobre elas, mas sim, o ensinamento com respeito. ¬-Falava para ele como se tivesse a ler um livro codificado em minha mente. As palavras soltas, em frases se uniram e me defenderam.- Só pelo facto de ter falado comigo pude aprender-continuei.
Falei com os olhos fixos no soldado que hipnotizado recebia as contrabalas das minhas palavras. Se ressentiu das suas sentenças retrogradas e selvagerica, chamando a consciência para si. “O Davide havia vencido o Golias”- falava no meu silêncio.
-Vai lá- Dirigindo-se a mim.
Foram as últimas palavras que saíram da sua boca. Não quis dar mais motives para que ele voltasse atras. Embalei-me na minha viagem de retorno à casa. Mais uma vez conversava com o autor que estava na minha cabeça e que me ajudou a sair daquela encruzilhada.
“Quem conta um conto aumenta um ponto”, mas também, “Quem lê um conto, aumenta um ponto”. Foi a lição que aprendi desta historia. O proverbio ganhou vida em mim.

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